“A ditadura determinava que crianças de até seis anos fossem adotadas por famílias de militares”
Livro de Eduardo Reina revela casos de filhos de guerrilheiros sequestrados por integrantes da repressão durante a ditadura militar

Por Vanessa Gonçalves
Os 21 anos da ditadura militar no Brasil foram mais sombrios do que é possível imaginar. Durante os Anos de Chumbo (1964-1985), perseguições, torturas, mortes e desaparecimentos forçados marcaram o período. No entanto, entre as vítimas desse regime também estavam as crianças, muitas delas sequestradas e adotadas ilegalmente por militares ou pessoas ligadas às Forças Armadas.
O sequestro de filhos de opositores políticos não foi um fenômeno isolado do Brasil. Durante as ditaduras militares que dominaram a América Latina no mesmo período, práticas semelhantes ocorreram em países vizinhos. Na Argentina (1976-1983), estima-se que cerca de 500 bebês e crianças tenham sido sequestrados de pais considerados subversivos e entregues ilegalmente a famílias ligadas ao regime. O grupo Abuelas de Plaza de Mayo atua até hoje na busca por essas crianças, agora adultas, para restituir-lhes suas identidades. Até o momento, 139 foram encontradas.
No Uruguai (1973-1985), pelo menos 30 crianças foram sequestradas, muitas delas levadas para a Argentina no âmbito da Operação Condor, um acordo entre regimes militares da América Latina para perseguir opositores políticos. Casos semelhantes ocorreram no Chile e no Paraguai, onde crianças foram retiradas de suas famílias e criadas sob novas identidades.
Essa realidade do caso brasileiro, que veio à tona recentemente, é detalhada no livro "Cativeiro sem Fim", do jornalista e escritor Eduardo Reina. A obra traz à tona histórias de ao menos 19 crianças sequestradas pela ditadura, revelando um lado pouco conhecido da repressão: a tentativa de apagar não apenas os militantes de esquerda, mas também sua descendência.
Entre os casos documentados está o de Rosângela Serra Paraná, sequestrada ao nascer e entregue a uma família de militares. Sua certidão de nascimento foi falsificada, e, ainda menor de idade, foi vítima de exploração sexual dentro da própria família adotiva. Outro caso é o de Giovani Viana da Conceição, filho do guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão. Levado pelos militares em 1973, aos quatro ou cinco anos, nunca mais foi visto.
No bate-papo com o Leia Mais Jornalistas, Eduardo Reina explora os detalhes dessa investigação, o impacto dessas revelações, bem como a importância de resgatar essas memórias.
LEIA MAIS JORNALISTAS – Você fala sobre crianças sequestradas pela ditadura. Queria saber como você chegou a este tema?
EDUARDO REINA – A Argentina tem uns 500 casos de crianças sequestradas por agentes da repressão durante a última ditadura no país. Se você fizer uma pesquisa, encontrará o sequestro de crianças no Uruguai, no Paraguai, no Chile, na Espanha, exatamente no mesmo período dos Anos de Chumbo. Eu achava difícil não ter nada parecido com isso no Brasil e isso sempre ficou na minha cabeça. Porém, eu nunca consegui provar. Em 2015, um amigo criou uma editora independente e me pediu para escrever um romance. Depois de pensar muito, pensei em fazer uma coisa ousada: escrever uma história fictícia de uma bebê, filha de uma militante política, que tinha sido sequestrada por agentes da repressão e entregue para o empresário que financiava um dos centros de repressão. Meu objetivo era jogar luz nesse assunto aqui no Brasil. Eu pensava: ‘quem sabe, ao ler um romance com uma linguagem mais fluida, mais despretensiosa, possa coragem às verdadeiras vítimas para que começassem a falar?’. O romance, intitulado “Depois da Rua Tutóia”, foi lançado em abril de 2016 e, dois meses depois, recebi o contato de uma pessoa, a Stephanie, filha da Rosângela Serra Paraná. Ela me procurou e disse: vimos seu livro e a história que você conta é muito parecida com a história da minha mãe. A minha mãe está procurando os pais biológicos dela, pois ela foi adotada por uma família de militares. Bingo!
LMJ – No final, sua aposta em trazer o tema num livro de ficção acabou dando certo?
ER – Sim. Aí a coisa começou. Em 2017, eu fui convidado para fazer uma palestra na Universidade Federal do Pará numa efeméride do 31 de março [de 1964]. Lá tive contato com várias pessoas que desenvolviam um trabalho muito grande na região da Guerrilha da Araguaia. Na época, o Paulo Fonteles, que infelizmente já faleceu, falou que a história do livro o tinha tocado, pois a mãe dele foi presa grávida. Os agentes da repressão fizeram um parto forçado e o sequestraram logo após o nascimento. No entanto, ele foi devolvido depois de uns cinco ou quatro dias. Ele me levou para a região para falar com as pessoas e aí virou uma bola de neve. Foram aparecendo novos casos: tem filho de guerrilheiro, criança sequestrada por engano, tem filho de camponês…
LMJ – A partir dessa sua experiência em investigar esses casos de crianças sequestradas por agentes da repressão, dá pra dizer que a ditadura brasileira serviu como referência para as outras ditaduras na América do Sul?
ER – Imagino que sim, embora não consiga comprovar isso com documentos. Na Argentina, por exemplo, foi descoberto no Ministério do Interior uma espécie de um manual de procedimento de como deveria ser feita essa ação de sequestro dos filhos dos guerrilheiros. Depois, se comprovou que no Brasil [a ditadura] determinava que crianças de até seis anos fossem adotadas por famílias de militares, porque eles acreditavam que elas ainda não estavam contaminadas “pela ideologia dos pais”. As crianças acima dessa faixa etária eles recomendavam matar. É importante lembrar que o sequestro [dessas crianças] é parte da estratégia de guerra total, de guerra insurrecional. Na Guerrilha do Araguaia isso aconteceu. A Mercês de Castro, irmã do Antônio Teodoro de Castro, continua procurando até hoje o corpo do irmão desaparecido. E sabe-se que há uma filha do Antônio [Teodoro de Castro] com uma mulher na guerrilha. Não se sabe se é uma guerrilheira, se é uma camponesa, mas essa criança foi levada com poucas semanas de vida para um orfanato em Belém, no Pará, que pertencia a um sargento da Aeronáutica da época. Este orfanato, que existe até hoje, tem um trabalho sério. Essa menina foi adotada por um casal que fazia a administração do local. Embora ela ame de paixão esses pais [adotivos], fez o exame de DNA com amostras das irmãs do Antônio Theodoro e deu 99% de compatibilidade. E agora há um processo de reconhecimento desta paternidade em Brasília. Mas, na minha opinião, nunca vão desengavetar esse processo, porque senão terão de vão assumir mais esse crime [do Estado].
Depois, se comprovou que no Brasil [a ditadura] determinava que crianças de até seis anos fossem adotadas por famílias de militares, porque eles acreditavam que elas ainda não estavam contaminadas “pela ideologia dos pais”. E, as crianças acima dessa faixa etária, eles recomendavam matar.
LMJ – Você reuniu uma boa documentação sobre esses casos de sequestro de crianças pelo regime militar e entregou para a Procuradoria Geral da República (PGR). Como anda esse processo?
ER – Inicialmente, a PGR abriu os procedimentos de praxe. Depois, eles foram segmentados por praça, ou seja, nos locais em que esses crimes ocorreram. Tem região, por exemplo, que arquivou o processo durante o governo Bolsonaro. Em outros locais, a situação está arrastada ou parada. Esse ano, a Polícia Federal começou a fazer a coleta de material genético de algumas vítimas para começar a fazer o cruzamento desses dados com os de familiares de presos políticos. Sei que eles já colheram material genético da Rosângela, de uma outra vítima que está no livro que pediu para não ser identificada, entre outros. Mas é uma coisa meio desesperadora. Estamos na contramão, por exemplo, da Argentina, que tem as abuelas, uma organização da sociedade civil muito forte, que está em busca desses netos sequestrados e já encontraram 139 daqueles 500. No Brasil, começamos a descobrir vítimas desse crime há pouco tempo. Estamos correndo contra o tempo cronológico, porque as vítimas já estão na casa dos 50, 60 anos e os pais, se vivos, têm muito mais idade.

LMJ – Durante a produção do livro você chegou a 19 casos de crianças sequestradas pela repressão. Fatalmente, devem existir outros se levarmos em conta que a ditadura durou 21 anos no Brasil?
ER – Sim. Eu já fui procurado por mais de 50 pessoas desde o lançamento do livro. Pela minha experiência de apuração, tenho certeza que não são mais cinquenta e poucos novos casos. Creio que esse número deva cair para dez ou 12, mais ou menos. Mas este é um trabalho muito lento. Você tem que ir atrás das pessoas, ganhar a confiança delas para que falem com você e exponham uma coisa que está guardada há tantas décadas. Por incrível que pareça, as pessoas ainda têm muito medo de falar sobre isso. É um absurdo. Estamos há mais de meio século do fim da ditadura e as pessoas têm muito medo de falar qualquer coisa relativa a isso. A mão pesada e sangrenta dos militares em cima dessas pessoas foi muito forte, principalmente daquelas que vivem na região do Araguaia, que continuam desamparadas. Falta a elas uma base jurídica que garanta não só indenização, mas também ajuda psicológica.
A gente está há mais de meio século do fim da ditadura e as pessoas têm muito medo de falar qualquer coisa relativa a isso. A mão pesada e sangrenta dos militares em cima dessas pessoas foi muito forte e elas – principalmente aquelas que vivem na região do Araguaia – continuam desamparadas.
LMJ – Com o surgimento desses novos casos você pensa em fazer uma versão ampliada do livro ou mesmo um segundo volume?
ER – É um sonho. Toda a pesquisa para “Cativeiro sem Fim” durou cinco anos e foi financiada por mim. À época, eu tinha um bom emprego que conseguia me sustentar e pagar por tudo isso. Agora não tenho mais essa condição. Para fazer essa pesquisa do volume dois seria necessário um apoio financeiro, além de apoio jurídico pois, quando iniciei a apuração do “Cativeiros sem Fim", eu era uma pessoa desconhecida nesses locais dos crimes. Mas, agora, já sabem quem eu sou e há um perigo em seguir essas buscas sem respaldo jurídico.
LMJ – Recentemente, o livro também foi transformado em uma exposição no Museu das Memórias (In)possíveis. Como sua obra se encaixa nesse conceito diferenciado de museu?
ER – Essa foi a medalha de honra para o livro. O pessoal da Associação de Psicanálise e Psiquiatria de Porto Alegre apoia o Museu das Memórias Impossíveis. Desenvolvi um trabalho importante com eles, pois tinham uma clínica de testemunho e eles deram suporte para algumas das vítimas do “Cativeiro sem Fim". A exposição veio coroar esse trabalho. Mas também é justo destacar que o livro também foi classificado para o prêmio Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional. Embora o livro não tenha prêmios clássicos de literatura, acho que a repercussão dele dentro e fora do Brasil é bastante importante. O meu objetivo com o livro não era só fazer a denúncia do crime, mas começar um caminho para que outras pessoas continuem [essas pesquisas]. A história da ditadura no Brasil tem muita coisa ainda a ser contada e eu acho que outros pesquisadores, outros jornalistas, podem dar continuidade. No Araguaia, por exemplo, a cidade de Xambioá, que foi a base dos militares que combateram a guerrilha, tinha 5 mil habitantes na época e recebeu um contingente de 5 mil homens. Então, é óbvio que, da mesma forma que houve relacionamento de guerrilheiros com as mulheres locais, houve relacionamento de militares com essas mulheres também, que geraram filhos abandonados por esses pais. Também é preciso contar a história dessas crianças, filhos de militares com as camponesas do Araguaia. Fora isso, há a história das terras tomadas dos camponeses, entre outros casos.
A história da ditadura no Brasil tem muita coisa ainda a ser contada e eu acho que outros pesquisadores, outros jornalistas, podem dar continuidade.
LMJ – Seis décadas do fim da ditadura se passaram e sempre que chega o 31 de março voltamos a falar da ditadura. É como se o fantasma dela ainda pairasse no ar porque ainda há uma série de temas que o Brasil não tratou?
ER – Parafraseando o nome do filme, ‘eles ainda estão aí’. Eles continuam aí. Esse grupo que chegou ao poder recentemente é o mesmo que sujou as mãos de sangue na ditadura. Esse é o problema. Tem muita história para contar. Olha o tamanho do Brasil? Por exemplo, quando falamos da guerrilha do Araguaia focamos muito nos guerrilheiros, mas sabemos que houve a tortura e a morte dos sertanejos da região. Basta lembrar que um contingente do tamanho de um município chegou por lá e não temos a ideia real do impacto disso. Na região de Marabá, por exemplo, o Exército ainda faz uma ronda na casa de trabalhadores rurais. Todo mês, eles passam pela casa de algumas pessoas para dar um aperto nelas. Inclusive, existe uma ação correndo no Ministério Público Federal por conta disso. Estamos no século XXI e eles [os militares] continuam pressionando essas testemunhas.
Cada dia fico mais horrorizada com o que acontecia na ditadura
É horrível, e ainda tem gente que gosta deste louco do Bolsonaro