Carla Madeira: “Escrevo a partir de um acontecimento e não a partir de uma pauta social" #1
Autora fala sobre seu processo criativo, novo romance e adaptações para o audiovisual. Mais na news: previsões para o mercado editorial em 2025
🗣️ PROSA
Em um mundo em que a internet suga a atenção das pessoas, Carla Madeira nada na contramão. Com uma escrita envolvente, ela tem roubado a atenção dos leitores e, não à toa, está às vésperas (com o perdão do trocadilho) de bater a importante marca de um milhão de livros vendidos.
O que nem todo mundo sabe é que a autora flertou com os números e, por pouco, teve outro destino. Filha de um matemático, a mineira de Belo Horizonte chegou a cursar dois anos da disciplina. Mas, para a sorte dos leitores, acabou sendo raptada pelas palavras.
Diretora de criação da agência Lápis Raro, a jornalista/publicitária ainda soma à lista de qualidades a composição, razão pela qual tem sempre a tiracolo seu violão. Inclusive, a literatura aconteceu por acaso. Antes disso, Carla acreditava ser mais provável virar cantora do que escritora.
Seu primeiro romance “Tudo é Rio” (2014) nasceu de um exercício de linguagem. “Não existia uma história pronta em minha cabeça, nem a intencionalidade de abordar pautas específicas", contou ao Leia Mais Jornalistas. O fato é que a história ganhou vida e virou livro.
O triângulo amoroso entre um casal e uma prostituta, que começou como um projeto despretensioso, foi sendo divulgado no boca a boca e se transformou em um fenômeno literário. Daí para ganhar as estantes e os corações dos brasileiros foi um pulo.
Como consequência deste sucesso editorial, seus três romances tiveram os direitos de adaptação vendidos para o audiovisual. “Véspera” (2021), seu terceiro livro, será o primeiro a ganhar vida como série da Max. Sob direção de Joana Jabace e com consultoria da própria Carla, a obra terá no elenco: Gabriel Leone, que interpretará os gêmeos Caim e Abel, enquanto Bruna Marquezine será Veridiana e Camila Márdila viverá Vedina.
Entre o início das gravações da série e a produção de seu quarto romance, a autora arrumou um espaço na agenda para bater um papo com a gente e se tornar – para nossa honra – a primeira escritora a falar de forma inédita para o primeiro número desta newsletter. Bora conferir?
Leia Mais Jornalistas – Que caminho você enxergou para a sua carreira quando escolheu se formar em comunicação? Ser escritora já era um objetivo?
Carla Madeira – Meu desejo era estar próxima das linguagens artísticas: a música, cinema, artes plásticas, literatura. Todas essas linguagens fazem parte do dia a dia de um publicitário. Embora a publicidade não seja arte, os publicitários precisam ter sensibilidade artística e domínio dessas linguagens.
LMJ – Em qual momento o mundo da comunicação se encontra com o mundo da literatura?
CM – Na linguagem, na produção de sentido, no desejo de contar histórias. Embora a publicidade lide com objetivos mercadológicos, tem como desafio conectar-se com as pessoas, fisgar sua atenção e percorrer com elas um caminho sensorial. Fazer sentir, fazer pensar, fazer sentido.
LMJ – Há influência do jornalismo ou da publicidade na escrita dos seus livros?
CM – Uma grande influência. Em especial, no treino com as palavras e com a síntese. Os formatos publicitários são muito limitados, é preciso contar uma história em pouco tempo e em pouco espaço. Disso decorre uma atenção obsessiva com a textura, com a escolha das palavras, com o ritmo.
Sou jornalista também, e meu trabalho, como profissional de comunicação, passa pela adequação da linguagem aos propósitos e meios. Isso me deu muitas oportunidades de exercitar a intencionalidade na escrita.
“Eu escrevo a partir de um acontecimento e não a partir de uma pauta social. Ao ser fisgada por um acontecimento, me interessa olhar para as personagens envolvidas e suas circunstâncias”
LMJ – Como acontece a escolha dos temas centrais das suas obras? Existe um acontecimento que te pauta e traz a inspiração para o desenvolvimento dele em sua escrita? Como funciona seu processo criativo?
CM – Eu escrevo a partir de um acontecimento e não a partir de uma pauta social. Ao ser fisgada por um acontecimento, me interessa olhar para as personagens envolvidas e suas circunstâncias. Por que foram parar ali? O que farão a partir de tal acontecimento? As personagens têm sua plasticidade afetada pelo que vivem assim como todos nós. Quando escrevo, sou um corpo em escuta. Com curiosidade e imaginação, vou me aproximando dos acontecimentos que observo. Por que uma prostituta entra em obsessão por um homem que não a deseja? Que dor imensa esse homem sente a ponto de recusar o imenso gozo? E assim vou olhando para essas pessoas em particular e tentando imaginar o que as enredou, o que veio antes, o que virá depois. Quando começo um livro, nunca sei onde ele vai me levar, não sou uma autora de composição; não planejo, escuto.
LMJ – Em algumas entrevistas, você comentou que levou 14 anos para concluir “Tudo é Rio”? O que houve de diferente nesse processo?
CM – Quando comecei a escrever “Tudo é Rio”, não tinha ideia de que faria um livro. Começou muito mais como um exercício de linguagem, um gosto de explorar aquele narrador e sua prosódia. Não existia uma história pronta em minha cabeça, nem a intencionalidade de abordar pautas específicas. Eu contava a história de Francisca e as Marias (personagens que ainda estão no livro de maneira secundária). Em um dado momento, senti necessidade de me afastar da história principal para ampliar suas possibilidades e foi quando comecei a falar de Lucy. Uma prostituta, contrariada em sua sexualidade fálica/ controladora, que entra em obsessão ao ser recusada por um homem: Venâncio. Que homem era aquele que carregava uma dor tão grande que recusava a promessa de um gozo incomparável? O que teria acontecido com ele? E, assim, veio Dalva, o grande amor de Venâncio e, com ela, o acontecimento central do livro, marcado por uma violência brutal, que me paralisou por 14 anos. Fiquei paralisada porque não tinha recursos para lidar com a situação que havia proposto, então, parei de escrever. Precisei de tempo para retomar a história. Quando voltei ao livro, meu interesse passou a ser o acontecimento que me paralisara e que enredava aquelas três personagens: Dalva, Lucy e Venâncio. A partir daí, “Tudo é Rio” foi um jorro, uma correnteza.
“Quando começo um livro, nunca sei onde ele vai me levar, não sou uma autora de composição; não planejo, escuto.”
LMJ – Em seus três livros elementos como amor e tragédia caminham lado a lado. Seria um reflexo do que você enxerga da vida real?
CM – Sim, acho que tenho essa angústia do incontrolável, do imprevisível, da força do real que vem com tudo e negocia muito pouco com a gente.
LMJ – Quando foi feito o contato com você com o interesse de transformar "Véspera” em série? Você tem participação na criação do roteiro e desenvolvimento da obra?
CM – As conversas começaram em 2022. No caso de “Véspera”, tenho atuado como consultora na criação do roteiro.
LMJ – Há algo que não abre mão nessa adaptação? Qual a principal dificuldade em adaptar o livro para o audiovisual?
CM – A dificuldade é sempre o recorte que será feito, porque uma série ou um filme é outra obra. Quando você recorta, naturalmente, faz escolhas, deixa coisas de fora e isso pode doer em um autor. Procuro contribuir com a minha visão e com as inúmeras ocasiões em que pude ouvir o leitor, mas tenho consciência que a adaptação para o audiovisual é uma outra obra e que não é mais minha.
“Acho que meus livros têm uma ressonância grande no leitor, talvez porque trazem questões que já estão latejando dentro dele".
LMJ – Como você enxerga o papel dos jornalistas no mercado editorial?
CM – Há muitos lugares para os jornalistas no mercado editorial. Como autores – porque são, em essência, escritores, estão aptos à realidade e à ficção, duas perspectivas que andam borrando, cada vez mais largo, suas fronteiras; e como editores e jornalistas propriamente, – são profissionais capazes de dar a conhecer livros, provocar e ampliar reflexões e enriquecer o encontro, inescapável, da literatura com a realidade ou da realidade com a literatura.
LMJ – Pesquisas recentes mostram como o hábito da leitura desapareceu da rotina dos brasileiros, em contrapartida, seus livros estão no topo de obras mais vendidas. Como avalia este cenário tão discrepante?
CM – O tempo que se poderia dedicar à literatura está sendo surrupiado pela internet e seus estímulos fáceis e viciantes, é uma pena. Acho que meus livros têm uma ressonância grande no leitor, talvez porque trazem questões que já estão latejando dentro dele, e, de alguma maneira, ajudam a juntar o que está espalhado.
LMJ – Você está preparando seu quarto romance. Pode falar um pouco sobre ele? O que os leitores podem aguardar desta obra?
CM – Será mais um romance, desta vez uma polifonia, que se passa dentro de uma família. Não escapo do desejo, ou talvez, da necessidade de mergulhar nas dinâmicas e circunstâncias familiares que equilibram, ou não, nossas potências de bem e de mal. Isso me interessa muito.
🗨️ ASPAS
“Vedina ficou, mesmo tendo um casamento que a consumia como uma doença terminal. Não parece óbvio querer se livrar de uma doença terminal? Acaso não sofria? Sim, sofria, e engana-se quem pensa que tomamos decisões contra a nossa vontade. É nossa vontade que se impõe contra nós e age!
Vedina passou a depender dos movimentos de Abel. A casa em que viviam era dela, mesmo assim colocou-se nas mãos pouco cuidadosas dele ao esperar que fizesse as malas. Uma vez, ele fez as malas, mas ela as desfez. Pensou ter visto um desamparo tão grande que se comoveu. Mas o miolo da rocha é mais rocha. E uma mulher não deve se enganar quanto a isso: se é preciso força para tocar no amor de um homem, melhor deixá-lo.
Mil vezes: melhor deixá-lo!”
SE GOSTOU DE “VÉSPERA”, VOCÊ TAMBÉM PODE CURTIR…
Para ler
📖 “Os Irmãos Karamazov”, de Fiódor Dostoiévski.
Romance filosófico que explora temas como moralidade, fé e livre-arbítrio. A trama gira em torno do assassinato de Fiódor Karamázov e das complexas relações entre seus três filhos: Dmitri, Ivan e Aliêksei. A obra combina drama familiar com investigações psicológicas e filosóficas intensas. Considerado um dos maiores romances da literatura mundial, desafia o leitor a refletir sobre a condição humana.
📖 “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum.
Romance que narra a conturbada relação entre os gêmeos Yaqub e Omar, filhos de imigrantes libaneses em Manaus. Enquanto Yaqub é reservado e disciplinado, Omar é impulsivo e passional, gerando um conflito familiar intenso. A rivalidade entre eles reflete temas como identidade, memória e destino, além das tensões sociais e culturais da região. A narrativa mistura passado e presente para revelar segredos da família. A obra é um dos grandes marcos da literatura brasileira contemporânea.
📖 “A Leste do Éden”, de John Steinbeck.
Romance épico que reconta a história de Caim e Abel por meio das famílias Trask e Hamilton. A trama acompanha gerações marcadas por amor, ciúme e a luta entre o bem e o mal. Os irmãos Charles e Adam Trask representam esse conflito, que se repete nos filhos de Adam, Caleb e Aron. A obra explora o conceito de timshel ("tu podes"), destacando o livre-arbítrio humano. Considerado um dos grandes romances americanos, aborda moralidade, destino e redenção.
📖 “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis.
Romance que narra a rivalidade entre os gêmeos Pedro e Paulo, desde o nascimento até a vida adulta. Enquanto Pedro é conservador e ligado ao passado, Paulo é progressista e revolucionário, refletindo as transformações políticas do Brasil no século XIX. A disputa entre os irmãos se estende ao amor pela mesma mulher, Flora, que representa a incerteza e a dualidade.
Para assistir
📺 “Dois Irmãos” (2016)
Adaptada da obra homônima de Milton Hatoum, a minissérie de dez episódios, escrita por Maria Camargo, com direção artística de Luiz Fernando Carvalho, retrata a intensa rivalidade entre os gêmeos Yaqub e Omar, explorando as tensões familiares e culturais em Manaus. A produção se destaca pela fotografia cuidadosa e pelas atuações marcantes, especialmente de Cauã Reymond, que interpreta ambos os irmãos.
🎞️ “Vidas Amargas” (1955)
Baseado no romance “A Leste do Éden”, de John Steinbeck, acompanha Cal Trask, um jovem rebelde que busca a aprovação do pai enquanto lida com a rivalidade com seu irmão Aron. Em meio a conflitos familiares e descobertas dolorosas, Cal enfrenta questões de identidade e redenção. O filme, estrelado por James Dean, é um poderoso drama sobre amor, rejeição e o livre-arbítrio.
📚 DA PAUTA AO LIVRO
O que esperar do mercado editorial em 2025?
Livrarias online, redes sociais, diversidade, IA, editais… Esses são alguns dos focos citados como tendências para 2025.
Segundo o Núcleo de Estratégias e Políticas Editoriais (Nespe), as tendências que se consolidaram em 2024 serão ainda mais relevantes neste ano. Entre elas: consolidação das livrarias online como principal canal de venda; relevância das redes sociais na descoberta de novos livros e autores; crescimento de audiolivros com novos investimentos das plataformas; busca por livros que representem a diversidade da sociedade.
Na mesma linha, Lauri Cericato, em coluna no LinkedIn, destacou a valorização da diversidade e inclusão e que 2025 promete ser marcado pela ampliação da representatividade no mercado editorial brasileiro – tanto na valorização das vozes de autores como na produção de obras em formatos acessíveis.
Já as redes sociais devem atingir um novo patamar. Plataformas como Instagram, TikTok e YouTube seguirão essenciais na promoção de livros, com os chamados "influenciadores literários"
A inteligência artificial (IA) também terá um impacto crescente na cadeia de produção editorial. 2025 também deve contar com a retomada e fortalecimento dos editais do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e das vendas públicas, que prometem ser um dos pilares do mercado editorial brasileiro.
🔎 GARIMPANDO
Livros, Biritas & Ideias
A Ria Livraria, em parceria com o recém-criado Instituto Caminhos da Palavra, deu início em fevereiro a uma série de bate-papos gratuitos. O “Confra Ria - Livros, Biritas & Ideias” traz debates com autores contemporâneos sobre questões relevantes do universo literário.
O projeto já tem a programação fechada e os encontros estão agendados até julho. Em abril, receberá o jornalista Xico Sá e Andrea del Fuego para a conversa “Dia da Mentira: breve festival de lorotas”. Em maio, será a vez de Izabella Cristo (Prêmio Caminhos), Tatiana Nascimento (Prêmio Pallas) e Bethânia Pires Amaro (Prêmio Jabuti) no bate-papo “Eita, venci um prêmio! E agora?”. Por fim, em julho, André Sant’Anna e Amara Moira discutirão o tema “Viva os maluco: literatura é transgressão”.
01/04, às 19h30 – Dia da Mentira: breve festival de lorotas
Com Xico Sá e Andrea del Fuego, mediação de Henrique Rodrigues29/05, às 19h30 – Eita, venci um prêmio! E agora?
Com Izabella Cristo (Prêmio Caminhos), Tatiana Nascimento (Prêmio Pallas) e Bethânia Pires Amaro (Prêmio Jabuti), mediação de Henrique Rodrigues15/07, às 19h30 – Viva os maluco: literatura é transgressão
Com André Sant’Anna e Amara Moira, mediação de Henrique Rodrigues
📍 Ria Livraria
R. Marinho Falcão, 58 – Sumarezinho, São Paulo (próximo à estação de metrô Vila Madalena – Linha 2: Verde)
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