Cúmplice do regime, a "Folha" perseguiu jornalistas e ajudou a repressão
“A serviço da repressão” desconstrói o mito da imparcialidade da "Folha" durante a ditadura militar, revelando o papel ativo do jornal na perseguição de militantes
No dia 31 de março de 1964, enquanto tanques ocupavam as ruas e o golpe militar tomava forma, a “Folha de S.Paulo” distribuía nas bancas um suplemento especial de quase 40 páginas intitulado “64: Brasil Continua”. O encarte celebrava o fim do governo de João Goulart e exaltava a chegada da “ordem”. Meses antes da decretação do AI-5, o Grupo Folha já sabia de que lado estava. Alerta de spoiler: não era o da democracia.
O episódio é apenas uma das peças que compõem o quebra-cabeça revelado pelo livro “A serviço da repressão: Grupo Folha e violações de direitos na ditadura”, de autoria dos jornalistas e pesquisadores Ana Paula Goulart Ribeiro, Amanda Romanelli, Andre Bonsanto, Flora Daemon, Joëlle Rouchou e Lucas Pedretti, lançado pela editora Mórula.
A obra, que chegou às prateleiras no final de 2024, ganhou uma importante aliada na disseminação das informações do livro: a série documental “Folha Corrida”. Dirigida pelo cineasta Chaim Litewski e exibida no canal ICL, ela apresenta parte do material audiovisual colhido durante a investigação iniciada em 2021 pelos autores do livro e revela uma face pouco exposta do maior jornal paulista: seu envolvimento direto com a repressão política.
O Leia Mais Jornalistas conversou com duas autoras do livro, as jornalistas Amanda Romanelli e Flora Daemon, que deram um panorama sobre a pesquisa e as revelações que confirmam o papel do jornal como apoio do regime militar.
Do jornal à delação: repressão dentro da redação
“A ideia de que a “Folha” foi apenas cúmplice editorialmente é uma meia-verdade. O que a nossa pesquisa mostra é que ela colaborou operacionalmente com a repressão, de forma sistemática e planejada”, explica Flora Daemon. “Ela cedia carros para operações do DOI-CODI, contratava delegados do DOPS como funcionários da empresa, vigiava seus próprios jornalistas e os entregava à repressão.”
Essa colaboração ia do topo da hierarquia até as ações mais cotidianas. “O Octávio Frias foi o fiador político do AI-5 em 1968. Ele se reuniu com empresários da Fiesp e levou ao [general] Costa e Silva o apoio dos empresários à medida de exceção mais grave da ditadura. Ou seja, a ‘Folha’ estava implicada no projeto político da ditadura, e não apenas fazendo jornalismo de ocasião.”
Embora todos que conviveram com o Octávio Frias de Oliveira o descrevam como um sujeito muito agradável e não o associem a algo que remeta à violência, à tortura, é preciso avaliar de forma imparcial seu relacionamento estreito com o regime. “Isso é um dever de casa para todos nós, pois pessoas que podem ser extremamente afáveis e carinhosas, também podem ser capazes de fazer coisas absolutamente absurdas, controversas, contestáveis e sofríveis. Não estou dizendo que o Octávio Frias torturou alguém, mas essa contradição está muito apaziguada pra mim", diz Flora.
“A ideia de que a “Folha” foi apenas cúmplice editorialmente é uma meia-verdade. O que a nossa pesquisa mostra é que ela colaborou operacionalmente com a repressão, de forma sistemática e planejada”
“Para que houvesse o torturador, para que houvesse o sujeito lá na ponta torturando, matando, desaparecendo, outras figuras tiveram que ocupar espaços centrais nesse processo. E essas figuras, necessariamente, não apertaram o gatilho de uma arma", comenta Daemon. “No caso do [Octávio] Frias, ele forneceu carros de distribuição de jornal para perseguir e matar pessoas; ou estampou centenas de manchetes que faziam a população achar que aquelas pessoas [os militantes de esquerda] mereciam qualquer tipo de violência empregada contra aquelas existências", complementa.
O fato é que, para além do famoso encarte comemorando o golpe, o livro revela como o Grupo Folha incorporou agentes da repressão em seu quadro funcional. Os irmãos Robert e Edward Quass, dois delegados ligados diretamente a Sérgio Paranhos Fleury, são citados como casos emblemáticos. Atuavam na segurança da empresa, mas eram, na prática, informantes internos e figuras de intimidação dentro da redação.
“Eles tinham sala, secretária, telefone e trânsito livre na sede do jornal. Eram tratados como parte da alta direção”, conta Flora. “Temos depoimentos de jornalistas, tanto de esquerda quanto de direita, que confirmam isso. Até o Boris Casoy afirmou que ligava diretamente para os Quass quando precisava resolver alguma situação ligada à segurança.”
Além disso, há o caso de Paulo Frateschi, militante da Ala Vermelha da ALN (Ação Libertadora Nacional), libertado do DOI-CODI dentro da própria sede da “Folha”, após sua família pagar uma quantia altíssima aos irmãos Quass em troca da liberdade. “Isso é um símbolo do nível de imbricação. Como alguém sai de uma prisão política direto para o saguão da ‘Folha’? É como se o prédio do jornal fosse extensão da repressão”, observa Flora.
Carros da “Folha” a serviço da repressão
Os carros de distribuição do jornal serviram muitas vezes de disfarce para ações dos militares em vigilância, campanas, sequestros, assassinatos e desaparecimentos forçados de militantes, apontam os pesquisadores no livro.
Entre os episódios mais chocantes está o relato da militante Ana Maria Nacinovic Corrêa. Segundo ela, no dia 23 de setembro de 1971 três guerrilheiros da ALN foram atraídos para uma cilada em frente ao número 2.358, da Rua João Moura, na Zona Oeste da capital paulista. Ela e seus companheiros – os militantes Antônio Sérgio de Matos, Eduardo Antônio da Fonseca e Manoel José Nunes Mendes de Abreu, que hoje integram a lista de desaparecidos políticos – foram surpreendidos por policiais que saltaram repentinamente de dentro de uma camioneta baú da frota da “Folha”. Sobrevivente da emboscada, a dirigente da ALN, assassinada dez meses depois, contou o relato para dirigentes da organização.
“A “Folha” não apenas vigiava seus funcionários; ela colaborava com sua prisão, com sua perseguição. Depois, demitia, jogava fora e apagava do histórico da empresa.
Ivan Seixas, ex-militante e sobrevivente da ditadura, é outro a relatar a participação dos automóveis do Grupo Folha. Preso aos 16 anos junto com seu pai, o dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) Joaquim Alencar de Seixas, foi levado ao DOI-CODI pelos agentes da repressão. No local, pôde avistar carros do jornal dentro do estacionamento do DOI-Codi.
“Abandono de emprego” e fichas adulteradas
A repressão aos próprios funcionários também se materializou em documentos internos. Três jornalistas – Rose Nogueira, Sérgio Gomes da Silva e José Maria dos Santos – foram presos, torturados e demitidos sob alegação de “abandono de emprego”.
“A “Folha” não apenas vigiava seus funcionários; ela colaborava com sua prisão, com sua perseguição. Depois, demitia, jogava fora e apagava do histórico da empresa. A Rose estava de licença-maternidade. É de uma crueldade sem tamanho”, diz Flora.
Para Amanda, o mais chocante foi constatar o esforço do veículo em apagar o passado. “A gente pôde ver essas fichas. Foram adulteradas. Em vez de constar que a pessoa foi presa, ou afastada, ou que houve qualquer explicação, está lá: abandono de emprego.”
Inclusive, a prisão desses funcionários da empresa Folha da Manhã foi noticiada nos próprios jornais da casa, ou seja, não dá para negar que a direção soubesse desses episódios.
Documentos, microfilmes e silêncio calculado
Amanda, responsável pelo trabalho de campo em São Paulo, passou meses vasculhando arquivos, coleções em microfilme e documentos físicos.
“Boa parte do acervo da “Folha da Tarde”, por exemplo, só existe fisicamente na empresa. Nunca foi digitalizado. E a sensação é clara: nunca será. Porque aquele jornal é a parte mais escancarada da colaboração com a ditadura”, afirma.
Apesar das descobertas contundentes, a “Folha” não respondeu à pesquisa. Foram feitos contatos com a redação, com o setor jurídico, e até ofícios formais do Ministério Público Federal (MPF). Nada.
“A ‘Folha’ reescreveu a sua história. E reescreveu tão bem que hoje é difícil convencer até jornalistas de que ela participou ativamente da ditadura. Mas a documentação está aí. E o silêncio também é uma escolha editorial”, reforça Flora.
Memória para não repetir
“Essa história importa porque ela explica por que o Brasil é o que é. Explica o silêncio, a violência, a impunidade. A imprensa foi parte da engrenagem da repressão e não pode sair dela ilesa.”
A intenção dos autores de “A serviço da repressão” ao trazer as denúncias à tona tem como objetivo não só justiça, mas também reparação aos jornalistas perseguidos no próprio ambiente de trabalho.
“Não queremos que a ‘Folha’ feche as portas. Não é sobre censura ou revanchismo. É sobre responsabilidade. E sobre o direito que a sociedade tem de saber quem foram os cúmplices da ditadura”, afirma Amanda. “Num país em que ainda existem saudosistas do autoritarismo, essa memória precisa estar viva. Senão, corremos o risco de repetir tudo de novo.”
Para as autoras, traduzir a investigação acadêmica em linguagem audiovisual na série “Folha Corrida” tem um motivo pra lá de relevante: “Desde o início, sabíamos que não bastava produzir uma pesquisa teórica. Era preciso disputar também a memória popular. Por isso gravamos todos os depoimentos em 4K, pensando desde o começo em transformar isso em série”, conclui Flora.
Por Vanessa Gonçalves