“Elis não deixou que os outros traçassem seu destino”
Julio Maria lança biografia ampliada de Elis Regina em comemoração ao aniversário de 80 anos da artista
No dia que marca os 80 anos de nascimento de Elis Regina, chega às livrarias a nova edição de “Elis: nada será como antes”, de autoria do jornalista Julio Maria. Lançada originalmente em 2015, a biografia foi ampliada e traz histórias inéditas sobre a cantora, incluindo os bastidores da campanha Volkswagen, que reviveu a artista por meio de Inteligência Artificial. A peça publicitária conquistou três prêmios no Festival de Cannes, em 2024.
Uma das novidades mais esperadas pelos leitores é a reprodução das anotações da artista encontradas em uma agenda, guardada por décadas na casa do irmão da Pimentinha. No material, é possível conhecer os planos de Elis para o álbum que planejava lançar em 1982, desde a lista de canções, possíveis locais da turnê e até o nome do fotógrafo que faria a imagem da capa do LP que, coincidentemente, é o mesmo escolhido para ilustrar a capa da nova versão do livro.
A seguir, o jornalista do Estadão conta ao Leia Mais Jornalistas os detalhes da nova edição da biografia de Elis Regina e de seu próximo livro, já em produção:
Leia Mais Jornalistas – Você está relançando a biografia da Elis dez anos após a primeira edição. Como foi esse exercício de revisitar uma obra pronta e aclamada?
Julio Maria – Isso tem muito a ver com jornalista, né? A gente reabre o texto, depois de 10 anos, e pensa: só vou incluir atualizações. Uma historinha aqui, uma historinha ali e vou relançar. Na verdade, quando comecei a reler, me bateu uma crise com o texto. Eu achei que podia melhorar o que eu tinha feito há dez anos e comecei a deixar o texto mais limpo, mais fluido. Compensei a limpeza estética com a inclusão de histórias novas. Só o último capítulo é totalmente novo, pois fala sobre aquela publicidade [das Volkswagen] que a Elis aparece falando graças a um recurso de Inteligência Artificial.
LMJ – Outra novidade são os escritos inéditos de Elis Regina. Como você chegou até esse material?
JM – É aquela história de ter a sorte. Eu estava concluindo os últimos capítulos quando o Pedro Mariano, um dos filhos da Elis, me procurou dizendo que tinha recebido a poucos dias umas cadernetas da mãe, escritas pela própria Elis. Elas vieram do Rogério Costa, irmão da Elis, que também já faleceu. O Pedro me mandou fotos das cadernetas por WhatsApp e falei: ‘É óbvio que eu quero isso’. Em todas as páginas tem a Elis anotando tudo que ela queria: o disco que ia gravar, as músicas que queria gravar um dia, os lugares que queria visitar para fazer show e até o nome do fotógrafo que faria a foto da capa do disco de 1982. E, olha, que coisa incrível: é o mesmo autor da foto da nova capa do livro.
LMJ – Você trouxe mais aspas da Elis para o livro. O que os leitores podem esperar disso ?
JM –É interessante como as frases da Elis não servem só para um momento. É como se ela tivesse uma visão além e já refletisse sobre isso de forma mais universal. Muitas coisas que ela falava lá atrás, inclusive do momento político, sobre os músicos, sobre a voz, sobre o canto, sobre as cantoras brasileiras, são tão imortais quanto a música feita por ela. Isso me animou a trazê-la para o livro. Na primeira edição, decidi não colocar muitas aspas. Mas com a Elis é diferente. Acho que ela tinha que estar presente e falar em primeira pessoa. Nesta edição, a voz dela ressoa mais. Acho que os leitores vão sentir proximidade com a Elis.
A gente reabre o texto, depois de 10 anos, e pensa: só vou incluir atualizações. Uma historinha aqui, uma historinha ali e vou relançar. Na verdade, quando comecei a reler, me bateu uma crise com o texto. Eu achei que podia melhorar o que eu tinha feito há dez anos e comecei a deixar o texto mais limpo, mais fluido. Compensei a limpeza estética com a inclusão de histórias novas.
LMJ – Como foi essa mudança da foto da capa?
JM – O livro tinha uma outra foto na capa que eu achei que nunca iria superar. Até quem um dia, um amigo jornalista [Edmundo Leite, do Estadão] estava mexendo no arquivo desse fotógrafo e me mandou uma fotos da Elis, que eram lindas. E aí ele me contou que erma do Paulo Vasconcelos, exatamente fotógrafo que estava na caderneta da Elis. Então, meio que o Paulo se tornou o nome escolhido pela própria Elis para ser autor da capa da nova edição do livro também.
LMJ – É curioso como essa caderneta demonstra que a Elis estava preparando um ano diferente, ou seja, não existia uma disposição para a morte, como acabou acontecendo, né?
JM – Exatamente. A morte da Elis foi um acidente. Eu tive acesso aos exames feitos pelo Instituto Médico Legal e a quantidade de cocaína no corpo dela não era alta, quer dizer, não foi uma overdose. A mistura com a bebida alcoólica fez com que o corpo dela reagisse de um jeito capaz de levá-la a óbito. Por isso, foi mesmo um acidente.
LMJ – O cenário e essas anotações indicam que ela teria um ano fantástico pela frente, certo?
Sim. Ela estava indo para Som Livre, o que a colocaria, certamente, nas trilhas sonoras das novelas da TV Globo. Ela já estava pensando o repertório, arranjos já estavam sendo pensados. Enfim, tinha muita vida para alguém que pudesse estar pensando em morte.
Na primeira edição, decidi não colocar muitas aspas. Mas com a Elis é diferente. Acho que ela tinha que estar presente e falar em primeira pessoa.
LMJ – Você também revelou que fez novas entrevistas para o livro. Destacaria alguma delas nesta nova edição?
JM – Sim, incluí histórias de alguns autores gravados pela Elis. Por exemplo, um deles, o baterista Mutinho, que era sobrinho do Lupicínio Rodrigues. Ele conheceu o Elis ainda em Porto Alegre, onde tocaram em conjuntos de baile. Na outra edição eu não tinha localizado nenhum músico que tivesse tocado com ela antes de sair de Porto Alegre. Então essas novas histórias me marcaram muito. Outra bastante interessante é a de outro autor do Rio Grande do Sul chamado Raul Ellwanger. O Raul foi gravado pela Elis no momento em que ninguém o conhecia. Ele foi perseguido pelos militares durante a ditadura e teve que sair do país mesmo. E, mesmo ele sendo um cara super perseguido, a Elis gravou uma música dele chamada ”O Pequeno Exilado”.
LMJ – Houve um período em que Elis foi acusada de colaborar com a ditadura por ter participado das Olimpíadas do Exército. Ao gravar esse autor, essa dúvida se desfaz?
JM – Elis não foi a única a aceitar cantar nas Olimpíadas do Exército. Também foram o Ivan Lins, o Roberto Carlos, ou seja, uma galera mirou as críticas à Elis Regina. Embora ela não tenha sido diretamente ameaçada [pelo regime para participar do evento], o recado estava nas entrelinhas. Inclusive, recuperei uma entrevista de Elis para uma revista holandesa em que ela detona os militares. E o regime recebeu essa revista dos seus informantes no exterior. Trata-se de um documento presente nos arquivos da ditadura.
Depois ela ainda grava o hino do retorno dos exilados (“O bêbado e a Equilibrista”), ou seja, não é que ela esteve do lado de lá em algum momento. Inclusive, tem um episódio em que ela pede dinheiro para o André Midani, presidente da gravadora Philips no Brasil, para criação do Partido dos Trabalhadores. Ela passou a sacolinha para criação do partido e tinha uma admiração ali pela história do Lula. Acho que não há dúvidas de que, o tempo todo, ela estava firmando o pé ali no território da resistência contra o golpe de 1964.
A Elis não teve uma amiga, não teve uma turma. Ela desbravou um espaço para mulheres e como uma mulher que tinha muito poder de decisão sobre o próprio destino, não deixou que os outros traçassem o dela.
LMJ – Sabemos que escrever biografias de personagens que já morreram pode causar desconforto com a família, amigos ou com os fãs. Você teve algum tipo problema na produção do livro?
JM – Não. E olha, eu confesso que achei que teria, pois sabemos que o jornalismo é uma ponte frágil, porque as fontes dão entrevista achando que somos amigo delas, e esperam que você vá agradá-las. Eu nunca tive esse objetivo ao escrever a biografia da Elis. Esse trabalho foi feito apenas pelo meu interesse jornalístico por uma grande história. Alguma coisa aconteceu e, acho que o próprio livro falou por si, porque ele dá uma outra dimensão sobre a Elis. Fica claro que a agressividade dela é uma reação ao fato de estar sempre se defendendo dos muitos homens que queriam ser gravados por ela, que queriam tocar com ela, que queriam empresariá-la, que queriam se aproximar dos filhos… A Elis não teve uma amiga, não teve uma turma. Ela desbravou um espaço para mulheres e como uma mulher que tinha muito poder de decisão sobre o próprio destino, não deixou que os outros traçassem o dela.
LMJ – Seu livro é uma biografia de fôlego e fica evidente o trabalho de apuração do jornalista. Não há espaço para achismos.
JM – Eu sei que tem gente que gosta de fazer isso. Tanto que muitas histórias que surgiram no caminho eram mera suposição, mas que a apuração derrubou. Um jornalista mal-intencionado ignora a própria apuração em troca do barulho que essa suposição pode dar. Eu não posso apostar nisso e esconder o que eu apurei. Acho que o jornalismo diário forma biógrafos para o bem e para o mal. Ao contrário do jornalismo diário, que é feito na correria. É muito difícil fazer uma história acontecer em um ano, em dois anos. Três anos me parece ser o tempo mínimo para fechar as pontas, costurar tudo e checar todas as coisas. A biografia é onde se exerce o jornalismo no limite, é aprender a escrever com fôlego. Inclusive, acho que biografia tinha que ser uma disciplina nos cursos de jornalismo
LMJ – Você está acabando essa maratona para lançar a nova edição da biografia da Elis. Tem algum novo projeto em andamento?
JM – Eu tenho alguns (risos). Mas o que eu posso te contar é que estou me divertindo escrevendo um livro sobre os 30 anos da antiga casa de show Tom Brasil, atual Tokio Marine Hall. As histórias de bastidores, de camarim, são maravilhosas! É uma coisa deliciosa de fazer, de apurar.
Por Vanessa Gonçalves