Jornalista na literatura infantil: como contar boas histórias para crianças?
Bate-papo com Marcelo Moutinho
De um dia para o outro, uma menina passa a perceber o mundo sem as cores. Como deixá-lo colorido de novo? Essa é a premissa de “A menina que perdeu as cores”, de 2013, o primeiro livro infantil do jornalista Marcelo Moutinho.
Com doze obras publicadas, ele passeia tranquilamente por conto, crônica e biografia. Agora, lança seu terceiro livro infantil, “Bichos de nuvem”. Seja qual for o público, sua premissa é contar histórias. Mas como adaptá-las para as crianças? Quais as particularidades e desafios nessa escrita?
Hoje (18/4), no Dia Nacional do Livro Infantil, mostramos a presença dos jornalistas nesse gênero e conversamos com Marcelo sobre o seu trabalho.
Leia Mais Jornalistas: Marcelo, você já escreveu crônicas, contos, biografias e literatura infantil. Como é transitar por tantos gêneros?
Marcelo Moutinho: Eu comecei com a literatura chamada adulta. Comecei, na verdade, muito mais como contista, a crônica veio depois. E eu tenho uma filha de nove anos, e ela, claro, estimulou, digamos assim, a enveredar um pouco mais por esse universo, mas o primeiro livro [“A menina que perdeu as cores”] é antes dela. Eu já tinha essa vontade, esse primeiro livro infantil era um conto que eu ia escrever e imaginei que ficaria muito bom ilustrado e poderia ter uma pegada para criança. Foi uma experiência muito legal, o livro saiu pela [editora] Pallas e na ocasião foi ilustrado por uma ilustradora argentina [Anabella Lopez], que hoje está radicada no Brasil. Ela ganhou depois até um prêmio Jabuti de ilustração infantil.
E foi uma experiência muito difícil, na verdade, porque eu acho que o livro infantil tem uma dificuldade, que é você se equilibrar entre duas premissas. Uma é buscar um registro que não seja inacessível para a criança. Eu adoro ler livro infantil, mas nele o foco principal deve ser a criança. A segunda é ter o cuidado para que essa, digamos, “facilitação da linguagem”, não caia também em uma coisa de moral da história. Então, é um ponto muito difícil de alcançar. Eu tive muita dificuldade nesse primeiro livro lá atrás.
Eu acho que o livro infantil tem uma dificuldade, que é você se equilibrar entre duas premissas. Uma é buscar um registro que não seja inacessível para a criança. A segunda é ter o cuidado para que essa, digamos, “facilitação da linguagem”, não caia também em uma coisa de moral da história
Acho que fiquei satisfeito e a editora também. E aí, depois que minha filha nasceu, meus próprios livros de crônicas falam muito sobre o crescimento dela, eu passei a ter uma crítica dentro de casa. Ela foi a primeira leitora dos meus dois outros livros que saíram depois.
Você considera, então, de todas as suas experiências, a escrita do livro infantil como a mais desafiadora?
Sem dúvida. A biografia foi muito desafiadora também porque eu nunca tinha feito. Eu escolhi uma personagem que tem pouca documentação e pouca gente viva a conheceu [A biografia citada é “Estrela de Madureira”, sobre Zaquia Jorge, artista e empresária com enorme importância cultural nos anos de 1940 e 1950 no Rio de Janeiro]. E era um trabalho absolutamente novo. Fora esse fato de ter sido a primeira vez, eu talvez faça outra biografia no futuro e já vou estar mais calejado, digamos assim, para trabalhar nesse gênero. No infantil é sempre um desafio, porque sempre pesa sobre o fazer literário esse cuidado com a linguagem e o cuidado também para não deixar que esse trabalho de linguagem transforme a história em uma coisa desinteressante.
Sobre o processo de criação do livro infantil, você falou um pouco sobre a preocupação de não ter essa moral da história. Essa é a sua principal preocupação no momento da escrita? Quais são os outros desafios que você encontrou ou encontra nesse processo?
Eu acho que uma coisa que a gente aprende fazendo livro infantil é que o ideal é que você já pense mais ou menos que trecho de texto vai fazer parte de cada página, uma espécie de divisão prévia que o livro do adulto não enseja. Então, por exemplo, no meu primeiro livro eu tinha feito um textão corrido, depois eu já passei a entregar o livro com um pequeno texto em cada página, já imaginando, digamos assim, uma estrutura para a ilustradora ou o ilustrador depois trabalhar em cima. E eu acho que é muito importante também, porque todo livro infantil ilustrado é um trabalho de coautoria. O escritor faz o texto, o ilustrador faz as imagens. Eu entendo isso como uma coautoria, de fato, eu não acho que o ilustrador preste um serviço, acho que ele é tão autor quanto o escritor. Então, você tem que ter uma troca, em algum grau, com esse ilustrador, para que muitas vezes ele possa sugerir.
Por exemplo, vamos tirar essa frase que está narrando demais uma coisa visual e vamos deixar isso para a imagem, para não ficar redundante, para não ficar o texto legendando, em mau sentido, as imagens. Eu acho que texto e imagem, nesse caso, têm que ser complementares, né? Para que os dois juntos causem um efeito no leitor.
Todo livro infantil ilustrado é um trabalho de coautoria. O escritor faz o texto, o ilustrador faz as imagens. Eu entendo isso como uma coautoria, de fato, eu não acho que o ilustrador preste um serviço, acho que ele é tão autor quanto o escritor
Marcelo, você falou da sua filha e que em seu segundo livro infantil já teve mais a participação dela. Ela se tornou uma inspiração de tema, de pauta e de ideia no seu processo de escrita? Como tem sido esse processo?
Super, super. E não só para os infantis. No meu livro de crônicas novo, é um livro que praticamente acompanha o crescimento dela, as descobertas, essa experiência da paternidade. Eu acho que desde que ela nasceu, todos os meus livros são cartas para a Lia. Sejam os infantis, sejam os adultos. E, no caso do infantil, ela acaba sendo a primeira leitora. Ela lê quando ainda em texto, comenta, fala, e às vezes até me cobra: “olha, tem muito tempo que você não faz um infantil”.
Ela se enxerga nos livros?
Eu não sei se ela se enxerga. No livro anterior, “Mila, a gata preta”, a ilustradora, que conhece ela, de fato fez uma menina muito parecida com ela. E aí ela falou: “caramba, parece comigo”. Mas eu não saberia dizer para você se ela se enxerga no livro, mas eu acho que ela enxerga ali um cuidado com o universo da criança, que é um universo do qual ela faz parte.
Quando você decidiu escrever o livro infantil, como foi o processo com as editoras? Você procurou outra editora que tivesse especialização em literatura infantil?
Quando saiu meu primeiro livro infantil, eu já tinha outros adultos. Então eu já era um autor conhecido nesse universo. São universos muito afastados. Os autores de literatura infantil, de literatura para a infância e adolescente, os autores todos se conhecem. Existe uma cena desses autores, assim como existe a cena da chamada literatura adulta e, muitas vezes, essas cenas não conversam muito, não dialogam. São dois mundos razoavelmente apartados. Quando eu fui lançar, então, eu já tinha um nome mais fora daquele universo. Então eu resolvi procurar uma editora. À época, o Raphael Vidal, que hoje não é mais editor, estava trabalhando na editora, ele pediu para eu enviar para eles avaliarem. E aí eles deram várias dicas. Eu era muito cru, né, nessa área ainda. Deram várias dicas, mas acabou que todo mundo ficou feliz, eu e eles, quando saiu.
Eu ia lançar o segundo por lá também, pela Pallas, aconteceu a pandemia, e aí as editoras ficaram todas atribuladas com contratos assinados. Então ia ter que esperar demais. Lancei pela Oficina Raquel, que tinha mais espaço na grade e me acolheu com todo o carinho. E agora voltei pra Pallas. Basicamente foi isso. Mas eu gosto dessa ideia de concentrar os livros em algumas editoras. Por exemplo, meus contos estão praticamente todos na editora Record, meus livros de crônicas todos na Malê e os infantis estão nessas duas, hoje mais na Pallas.
Existe uma cena desses autores, assim como existe a cena da chamada literatura adulta e, muitas vezes, essas cenas não conversam muito, não dialogam. São dois mundos razoavelmente apartados
E quais são suas referências em livros infantis?
Olha, tem dois livros infantis que foram muito marcantes, assim, inclusive pelo fato de eu ter virado escritor, né? O “Flicts”, do Ziraldo, que é um livro definidor na minha vida, absolutamente definidor, porque eu não venho de uma família de gente letrada. Uma família de comerciantes, de trabalhadores do comércio. E quando eu li esse livro, o mundo se abriu pra mim. O livro fala de uma cor que não encontra seu lugar no mundo. Então, acho que eu também tinha, quando criança, essa inadequação. E depois o “Marcelo, Marmelo, Martelo”, da Ruth Rocha, que meu irmão mais velho me deu brincando, porque era o meu nome.
E eu amo esse livro até hoje, e minha filha ama esse livro até hoje, porque é um livro que brinca com as palavras, do porquê as coisas têm o nome que elas têm. Então, você vê, um que está ligado a um senso de não pertencimento, que é um senso muito presente na literatura, e outro que está ligado à própria linguagem, que é com que eu fui trabalhar.
E você vê muitos jornalistas se aventurando na literatura infantil? Como você percebe esse movimento?
Eu vejo muito mais se aventurando na literatura adulta, seja na ficção ou na não ficção. Realmente na literatura infantil pode até ter um caso ou outro, mas eu acho que é incomparável com relação aos outros universos da literatura.
E como você analisa esse atual momento na literatura infantil? E quais seus próximos projetos?
Tenho projetos de mais um, que eu estou sendo cobrado, porque eu já comentei com a pequena. Eu acho que a gente está num momento muito bom brasileiro. Temos autores premiados internacionalmente. Eu acho que hoje existe um mercado, muito por conta dos editais, claro, muito aquecido, em que os autores vendem muito, seja via edital ou não. Às vezes as pessoas dizem “ah, mas é edital”. O edital faz o livro cair na mão de crianças, de muitas crianças que, na verdade, não teriam recursos financeiros para comprá-lo. Então os editais são fundamentais. Eles ajudam a democratizar a literatura e ajudam a formar leitores na medida que leva livros no momento de definição na vida das pessoas que é essa passagem da infância para a adolescência. Eu acho que o momento é um momento muito muito interessante tanto do ponto de vista de mercado quanto do ponto de vista estético com obras de muita qualidade sendo produzidas.
Por Gabriela Ferigato