Por Gabriela Ferigato
“Afinal, sua vida pertence a quem”? Essa pergunta ficou ecoando na minha cabeça ao ler “O dia em que Eva decidiu morrer”, do jornalista Adriano Silva. A verdade é que, antes de pertencer a você, ela é posse de diversas outras instituições, como o Estado, o governo, a igreja ou a medicina.
O marinheiro e escritor espanhol Ramón Sampedro, tetraplégico desde os 25 anos e inspiração do filme “Mar Adentro”, lutou 30 anos na justiça pelo direito de morrer – e morreu antes da lei ser aprovada na Espanha. Então, de novo, sua vida pertence a quem?
Autodeterminação no fim da vida: é sobre esse tema que a obra se propõe a refletir. Se falar sobre morte ainda é tabu no Brasil e no mundo, imagine discutir a morte voluntária assistida.
Para navegar contra a maré do tabu, Adriano traz a jornada da brasileira Eva, nome fictício de uma personagem muito real, que, após um AVC, tomou essa decisão com todas as suas nuances: os dilemas, as relações familiares e as questões legais. “Aquele era o grande medo de Eva. Ficar presa a uma existência indigna, sem ter os meios para encerrá-la” (p. 50).
Quem esteve ao lado de Eva foi seu filho Guido, e isso também nos faz refletir sobre a dificuldade de “deixar” (entre aspas, claro, porque nossa vida pertence a quem, certo?) um amor partir. Mas é impossível não refletir como seria se fosse com alguém próximo. Afinal, em momento nenhum, dissemos que a escolha pela morte voluntária assistida é fácil; ela é necessária. “Era fundamental lembrar sempre que ela não tinha escolhido morrer porque não gostava da vida. Ao contrário: ela estava ali porque amava demais a vida para continuar existindo daquele jeito” (p. 139).
Junto com Eva, ao longo dos capítulos, Adriano traz histórias de outros personagens reais, de diversos países, que lutaram por seus direitos no fim da vida. Morrer de forma digna, hoje, é um privilégio. Cerca de 406 milhões de pessoas ao redor de um planeta com aproximadamente 8 bilhões de pessoas têm seus direitos de fim de vida assegurados no lugar onde moram.
Um parêntese aqui: enquanto lia esse livro, coincidentemente, assisti ao filme “Um quarto ao lado”, disponível na Netflix, e lá encontramos mais uma personagem dessa saga que é escolher ir embora de forma digna.
O panorama legal (e conceitual) também está presente no livro, o que nos ajuda, e muito, a entender mais sobre um assunto tão pouco falado e, muito por isso, repleto de estigma. Só para se ter uma ideia, hoje há apenas 14 países no mundo com legislação favorável à morte voluntária assistida (a MVA pode ser de dois tipos: a autoadministrada, conhecida como suicídio assistido, e a administrada por terceiros).
“É possível dizer que o Brasil não está conseguindo garantir nem o direito à vida a quem quer seguir vivendo, nem o direito a uma morte digna a quem decide ir embora” (p.163). Estamos longe, muito longe, de uma legislação por aqui – a mudança legal é sempre a última, mas, enquanto isso, é essencial que debatemos e entendamos mais sobre essa realidade – e o livro de Adriano Silva existe para isso.
📖 “O dia em que Eva decidiu morrer”, Editora Vestígio, 224 páginas.