Ruth contra Hitler: a coragem de uma jornalista em tempos de guerra
Livro de jornalista brasileira retrata resistência de Ruth Andreas-Friedrich ao nazismo
Como pode uma pessoa trabalhar durante o dia para os nazistas e, à noite, salvar pessoas perseguidas pelo regime? Esta foi a pergunta que inquietou a jornalista Luciana Rangel desde o momento em que encontrou o diário de Ruth Andreas-Friedrich, publicado logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Essa dualidade entre sobrevivência e resistência é o ponto de partida do livro “Ruth contra Hitler”, livro que resgata a trajetória da jornalista alemã que se recusou a ser cúmplice da barbárie.
Na semana em que celebramos os 80 anos da rendição alemã e o fim da Segunda Guerra Mundial, a história de Ruth é um lembrete incômodo e necessário de que, mesmo dentro de um regime totalitário, sempre há escolhas, apesar dos riscos.
Como jornalista atuando em uma imprensa já completamente apropriada pela máquina de propaganda nazista, Ruth optou por manter uma aparência de normalidade durante o dia, enquanto à noite abrigava judeus, forjava documentos e organizava fugas com o pequeno grupo de resistência Onkel Emil. Sua atuação foi tão impactante que, ao final da guerra, já estava na mira da Gestapo. Como sobreviveu, ainda é um mistério, mas o que se sabe é que ela jamais deixou de agir.
A brasileira Luciana Rangel, que mora na Alemanha e mergulhou no mestrado de escrita biográfica e criativa, foi guiada por um propósito claro: contar a história de uma mulher comum, mas com uma força moral incomum. E isso em um cenário em que o papel feminino na resistência ao nazismo foi historicamente subestimado — muitas vezes reduzido ao romance com um herói masculino.
No caso de Ruth, por exemplo, houve quem atribuísse sua coragem ao relacionamento com o maestro Leo Borchard. No entanto, ignoram que ela o sustentou durante a guerra, que as ações de salvamento foram lideradas por ela e que sua escrita, em forma de diário, se tornou um dos primeiros e mais importantes testemunhos da resistência alemã no pós-guerra.
A repressão aos jornalistas no Terceiro Reich foi sistemática e brutal. Logo em 1933, com Hitler no poder, veículos de imprensa foram silenciados, opositores presos, torturados e mortos. Escritores e jornalistas judeus, socialistas, comunistas ou simplesmente críticos do regime foram calados. Alguns fugiram, como o Nobel da Paz Carl von Ossietzky, que foi preso e morreu devido aos maus-tratos nos campos de concentração. Outros, como Rudolf Olden e Fritz Gerlich, pagaram com a vida por desafiar o Führer com palavras. Ruth, porém, conseguiu resistir de dentro das entranhas de uma imprensa sequestrada pelos nazistas, escrevendo com entrelinhas, disfarces e uma coragem civil que desafiava a lógica do medo.
Oitenta anos após a queda do nazismo, a lembrança dessas formas silenciosas de resistência se torna ainda mais urgente. Em tempos de polarização e crescimento da extrema direita, histórias como a de Ruth Andreas-Friedrich nos lembram que é possível — e necessário — resistir com pequenos gestos. E que a verdadeira coragem não está apenas nas armas, mas em atitudes cotidianas, no compromisso com a ética e com o outro.
A seguir, Luciana Rangel fala ao Leia Mais Jornalistas sobre o processo de escrever “Ruth contra Hitler”, o que aprendeu com essa trajetória de resistência e como o exemplo de Ruth continua a ecoar em nossos tempos.
Leia Mais Jornalistas – Quais foram os principais riscos que Ruth enfrentou ao decidir agir contra o regime nazista, mesmo sem fazer parte de movimentos armados ou organizações formais?
Luciana Rangel – Ela fez parte de um pequeno grupo de resistência em Berlim, Onkel Emil, junto com médicos, intelectuais e artistas. Preciso sempre destacar que eram pouquíssimos os grupos de resistência. Primeiro, pois a primeira coisa que os nazistas fizeram quando assumiram o poder, em 1933, foi prender, torturar e matar grande parte de seus adversários políticos. Segundo, porque a máquina nazista de terror era tremendamente bem orquestrada, usando o medo como ferramenta de repressão. Ruth poderia ter sido torturada, morta. No fim da guerra, Ruth já estava na mira da Gestapo. Não sabemos, a família dela e eu, como ela escapou, mas foi por pouco.
Leia Mais Jornalistas – Na sua opinião, como o trabalho como jornalista influenciou a forma como Ruth resistiu e registrou o que acontecia em Berlim durante a guerra?
Luciana Rangel – Os diários de Ruth são um testemunho histórico valioso, por ter muitos detalhes do período e por ter muitos registros da resistência alemã, algo raro. O fato de Ruth ter sido jornalista com certeza ajudou nos registros. Ela sabia o que era importante escrever. É um valioso documento histórico por ela ter publicado imediatamente após o fim da guerra, o que não deu tempo para grandes edições ou revisões.
Leia Mais Jornalistas – Muitos acreditam que resistir ao nazismo exigia grandes gestos públicos. O que a história de Ruth revela sobre o poder dos pequenos gestos individuais?
Luciana Rangel – Ruth combate o que os historiadores chamam de “a grande mentira alemã” de que o povo não sabia ou não podia fazer nada. Sempre podemos. Ruth era mãe solo e ainda envolveu a filha nos salvamentos. O que muitos podem considerar loucura era o único jeito de sobreviver dentro de um regime político que normalizava a barbárie. Sempre se pode escolher viver com uma melhor moral, com valores humanistas. Então, fazer o que se pode é manter seus valores éticos e melhorar o ambiente para todos. Seja dar comida, salvar vidas ou defender alguém em risco, a coragem civil precisa fazer parte do dia a dia de todas e todos. No fim, a história acontece com a coleção dessas pequenas histórias e pequenos gestos.
Leia Mais Jornalistas – Você mora na Alemanha há algum tempo. Na sua opinião, por que ações como as de Ruth são importantes para entendermos a resistência silenciosa ao nazismo?
Luciana Rangel – A história de maneira geral é contada da perspectiva de homens brancos. E os historiadores alemães avaliam os gestos e ações das mulheres como algo sempre movido a interesse ou casamento, o machismo nosso de cada dia. Não foi diferente no caso de Ruth, sempre associada ao namorado e parceiro que teve. Sendo que ela que o sustentou durante a guerra, por ele, o maestro Leo Borchard, ter sido impedido de trabalhar. Mas, mais importante do que contar sobre a resistência alemã dentro do país durante a segunda guerra mundial, foi, para mim, contar a história das mulheres, através de uma mulher comum. As mulheres perderam seus direitos durante o nazismo e sofreram estupro em massa no pós-guerra. Quem mais resiste são sempre as mulheres, são as que mais sofrem também. A gente vê isso naquela época e na guerra da Ucrânia, atual conflito que aflige a Europa.
Leia Mais Jornalistas – No livro, você comenta que Ruth foi bastante criticada por seu diário e até por atuar num veículo de imprensa alinhado ao nazismo. Acha que essa crítica tem um viés de gênero? Como avalia tudo isso?
Luciana Rangel – A estratégia de Ruth foi a da sobrevivência. Não teria como salvar pessoas sem ter uma fachada de normalidade. Apesar de ter escrito para um veículo nazista, ela, o quanto pode, desempenhou resistência, seja nas mensagens contra violência ou vocabulário usado em seus textos sobre educação e relacionamento. Se fosse um homem jornalista que tivesse feito o mesmo que ela fez, seria endeusado. O pai corajoso, o jornalista audacioso, com certeza temos o viés de gênero.
Leia Mais Jornalistas – De que maneira a história de Ruth desafia a ideia de que todos os alemães apoiavam Hitler ou eram passivos diante dos crimes do regime?
A maioria dos alemães apoiava e era passiva diante dos crimes. A história de Ruth desafia a ideia que que eles não podiam ter feito nada. Podiam. Os alemães assumem o holocausto, mas não assumiram que seu avós e bisavós mataram pessoas - seus parentes, coitados, participaram, mas não mataram ninguém. Não culpabilizo as novas gerações, mas é preciso falar sobre as histórias individuais e assumir os crimes cometidos pelo “personagem comum” da sociedade. Só assim poderemos combater melhor o crescimento da extrema direita na Alemanha.
Leia Mais Jornalistas – O que podemos aprender com o exemplo de Ruth sobre coragem moral em tempos de tirania e medo coletivo?
Luciana Rangel – A coragem civil precisa ser praticada no dia a dia. Acho que é essa lição que Ruth nos deixa. Seja no ônibus, para proteger uma pessoa de um ataque racista, seja no trabalho ao ouvirmos injustiças. A tirania e medo coletivo acontece quando não há coragem civil coletiva. Precisamos sempre nos lembrar que juntas e juntos somos mais fortes.
Leia Mais Jornalistas – Considerando que em 2025 completam-se 80 anos do suicídio de Hitler, qual a importância de relembrarmos essas formas menos conhecidas de resistência?
Luciana Rangel – Prefiro me lembrar dessa data como os 80 anos da libertação da Alemanha e humanidade do regime nazista. É importante lembrar para que saibamos que sempre temos a opção de uma moral melhor e humanista. Sempre. O resto é conivência.
Por Vanessa Gonçalves
Gosto muito dos conteúdos que vocês produzem!